O marco da enchente de 1929

As enchentes são uma conhecida realidade paulistana. Todo ano, o noticiário é tomado por reportagens cobrindo enchentes por vários cantos da cidade, e os meses de janeiro à março, no verão, são particularmente os mais acometidos pelas cheias dos rios.

Rua Rodolfo Miranda, no Bom Retiro, tomada pelas águas em 1929 (clique para ampliar)

De todas as enchentes que entraram para a nossa história, a de 1929 é até hoje lembrada como a mais terrível que acometeu São Paulo.

Aquele início de ano foi bastante atípico por um excesso de chuvas que acometeu não só a capital como diversas outras áreas do estado, como pelo até hoje não totalmente comprovado envolvimento da companhia canadense Light & Power com a tragédia.

Manchete sobre a enchente no extinto jornal Correio Paulistano

As suspeitas recaíram sobre a Light & Power devido ao fato de dois anos antes, em 1927, a empresa ter recebido do Governo Federal a licença para canalizar, retificar e inverter o curso do Rio Pinheiros.

Contudo o acordo também previa que em casos de cheia dos rios, os terrenos atingidos seriam também declarados de propriedade da empresa, que na época já visava expandir negócios e atuar no mercado imobiliário, ramo que atua até hoje (sabia disso ?), porém com outro nome¹.

Rua do Bom Retiro tomada pela cheia do Tamanduateí

Para registrar estas áreas atingidas pela enchente de 1929 a empresa Light demarcou algumas áreas atingidas pela inundação com pequenas placas de bronze, com o objetivo de posteriormente tomar posse destes terrenos.

Uma destas placas, pouco conhecidas pelos paulistanos, está justamente em uma das regiões mais atingidas pela trágica enchente, o bairro do Bom Retiro.

A pequena placa do nível da enchente de 1929 (clique na foto para ampliar)

Encontrar a placa não foi tão fácil como parece. Apesar da reportagem saber a rua onde ela estava instalada procurá-la, devido a seu tamanho diminuto, levou um certo tempo.

A rua Porto Seguro, onde ela se encontra, é uma via que liga a avenida Tiradentes até a avenida Cruzeiro do Sul. Embora a documentação da prefeitura que eu tinha em mãos poderia indicar a localização precisa da placa, optei por encarnar o espírito aventureiro e caminhar pela rua até encontrar.

O curioso é que comecei a procurar exatamente diante do local correto, porém do outro lado da rua. Como optei por caminhar primeiro pelo lado ímpar da via, só achei o pequeno marco quando terminava a caminhada. E olha, ele é realmente pequeno:

A seta indica a placa da enchente de 1929 (clique para ampliar)

Lá estava ele, na calçada do número 48, um pequeno quadrado de aproximadamente 12 centímetros de lado, preso à calçada de cimento. Exceto se você vai até ali sabendo de sua existência é quase impossível notá-lo pois ele se confunde e mistura-se com as pedras do piso.

Abaixo uma outra fotografia, com meus pés servindo de base para compreender o tamanho da placa:

Até hoje a grande cheia de 1929 é um grande marco da história paulistana, reconhecida como nossa maior enchente. As suspeitas envolvendo a empresa Light & Power nunca foram investigadas a fundo e até hoje não se comprovou se o ocorrido foi uma grande coincidência ou um sórdido plano de enriquecimento da empresa estrangeira.

O fato é que se em alguns locais onde os rios Tamanduateí, Pinheiros e Tietê encheram, passaram para a Light não foi o caso dessa região, que permaneceu pulverizada com vários proprietários. Talvez jamais saibamos a verdade.

Abaixo um galeria de fotos extraídas do extinto jornal Correio Paulistano com os respectivos clichês sobre a enchente (clique para ver ampliado):

E abaixo uma galeria com imagens do também extinto jornal A Gazeta, com imagens de outros locais inundados na capital:

Nota: 1 – A Light & Power mudou de nome décadas mais tarde e passou a ser conhecida como Brascan (abreviação de Brasil e Canadá ?) e atualmente atende pelo nome de Brookfield Asset Management.

Bibliografia consultada:

  • Correio Paulistano – Edição 23458 – pp 5
  • Correio Paulistano – Edição 23459 – pp 7
  • Correio Paulistano – Edição 23460 – pp 7
  • Correio Paulistano – Edição 23466 – pp 5
  • Correio Paulistano – Edição 23469 – pp 5
  • Correio Paulistano – Edição 23478 – pp 1 e 5
  • Correio Paulistano – Edição 23480 – pp 7
  • Correio Paulistano – Edição 23483 – pp 5
  • A Gazeta – Edição 06897 – pp 8
  • Site – Prefeitura do Município de São Paulo consultado em 22/11/2017

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21 respostas

  1. Interessantissimo este post. Jamais imaginaria que a Light and Power seria hoje a Brookfield, e esse ultimo nome, aliás, acaba de mudar tambem.

  2. Carambaaa! Coisas assim é que nos incentivam pra pesquisar fatos históricos. Parabéns pela iniciativa e importante “achado”. Parabéns!

  3. Olá Douglas, de quando é essa foto sua?
    Pois olhando pelo Street View, na foto mais recente (Jan/16), a placa foi coberta por uma “rampinha”.

  4. De fato, essa empresa nunca foi das melhormente bem intencionadas, mas, sem embargo, não creio que a desenvoltura deles chegou ao ponto de apropriar-se de terrenos urbanizados. Não estavam fundamentados em lei, que, naquele tempo e ainda hoje, prevê que somente à união e dado apropriar-se de terrenos ou prédios por acresção de marinha, ou seja, o ponto mais alto de uma maré nos últimos cem anos, alvéos de rios que foram aumentados em sua largura por qualquer efeito, aterros mar ou rio adentro, terrenos onde existiram aldeias indígenas extintas ou abandonadas. Vale a pena lembrar que a acresção por abandono de alveo, ou seja, quando um rio deixa seu curso e passa a fluir por outro caminho, passa a pertencer aos proprietários ribeirinhos. Visto isso, creio que eles praticaram o esbulho apenas sobre propriedades abandonadas ou de quem não quis ou não teve condições de defender sua posse. Mas, caro Douglas, talvez você tenha despertado um monstro. Se eles lerem este post são bem capazes de aparecer lá no Bom Retiro reivindicando a posse dos imóveis. Dessa gente tudo pode se esperar tudo.

  5. Em tempo: por um lapso escrevi “acresção” em lugar do correto acreção.

  6. Excelente trabalho,bem pesquisado, porém se foi negligencia da empresa ou não, dificilmente saberemos !

  7. A unica coisa que não compreendi foi que esse calçamento deve ser recente, não foi feito em 1929 e o marco foi preservado sem ter sido quebrado ou tampado?

  8. Morei na Praça Bento Camargo de Barros(em frente ao saudoso Clube de Regatas Tietê) num cortiço que ainda resiste ao tempo nos anos 80/90, e como eu era criança/pré adolescente, eu não sabia da existência desse marco, muito bacana a matéria, parabéns.

  9. Onde tem “asset management” tem trapaça. Desconhecia essa teoria conspiratória. Ótimo registro.

  10. Ola Boa Tarde, existe um marco deste na Rua Itaqui entre a Rua Paganini e Rua Tiers no Bairro Pari, eu morei proximo, acredito que os Chineses tenham arrancado, pois compraram quase todo o bairro e construiram galpões

  11. Interessante….., pelo vistos os Canucks gostam mesmo do Brasil ( E o Brasil gosta muito deles )  A Light ( mais especificamente São Paulo Tramway, Light and Power Company ), se nao me engano, foi passada ao Controle Estatal, isto nos fins da década de 70 ( corrijam-me se errado ), e assim mesmo eles permaneceram por aqui. Outros teriam enfiado o dinheiro da venda no bolso, contabilizado ganhos e perdas, e caído fora. A pedra de lançamento da empresa ( não das obras ), se deu em Toronto, ON.

    É interessante notar que outras concessionárias poderiam ter sido pioneiras nisto, talvez uma empresa Britânica, dado que a Light foi incorporada em 1899, e os Ingleses estavam enfiados na condução de Estradas de Ferro em São Paulo, senão sem participação acionária plena, assim mesmo haviam Engenheiros Britânicos engajados na construção da malha ferroviária Paulista.

    Certamente os Americanos não  estariam envolvidos em energia hidrelétrica na época, e ademais  a presença do Capital Americano era parco por aqui ( excecao a Ford Motor Co e um ou outro ), e so veio a deslanchar  em nossas praias após a Segunda Guerra Mundial.   Ademais, na época, Niagara Falls ( no lado Americano da Fronteira ) não era explorada para produção de eletricidade.   A grande barragem do Hoover Dam, em Nevada, so foi erguido antes da II Guerra Mundial, durante a administração de FDR, na época após a grande Depressão e o principio do programa de obras do  New Deal.

    Alias, os Canadenses sao tao bons nisto, que ate hoje eles exportam energia elétrica limpa para os USA ( Veja Hydro-Québec, aliás ainda sob controle Estatal sob o controle da Província de Quebec ).
    Tirando todas estas observações históricas, As Marginais Tietê e Tamanduateí necessitam do Piscinão, e os Rios que cortam São Paulo deveriam passar por um processo de despoluição ( o qual seria caro, porém necessário ). Algo que deveria ser incluso no Plano Diretor e usar o dinheiro de CEPACs para tais fins. As marginais fedem como esgoto a céu aberto, e qualquer iniciativa de tornar a cidade um destino mundial, passa pela limpeza dos Rios e da Cidade em Geral.

  12. Quem tiver interesse no assunto, há uma tese de doutorado da USP: O meandro dos rios nos meandros do poder, da professora Odete Seabra.
    A tese foi transformada em livro e é ótimo.
    Saudações

  13. Nos anos 60, me lembro que na calçada da Rua Gago Coutinho (lado ímpar) na Lapa havia uma placa como essa – “Nível da enchente de 1929”. Infelizmente ela não se encontra mais lá já há algum tempo. Uma pena!

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