O incêndio do Martinelli

Quando paramos para pensar nos incêndios que atingiram os arranha-céus de São Paulo sempre lembramos de dois: Andraus e Joelma. Mais recentemente, em 2018, um terceiro entrou pra lista das tragédias paulistanas, o do Edifício Wilton Paes de Almeida.

Porém poucos sabem que há 90 anos um hoje esquecido incêndio em um arranha-céu trouxe pânico e literalmente parou a capital paulista. Foi o incêndio do Prédio Martinelli.

Manchete do incêndio no extinto jornal Correio Paulistano

Mas antes de falar sobre o trágico acontecimento é preciso voltar aos primeiros anos do século 20 e traçar um cenário sobre o que era São Paulo e seu panorama de edificações.

A cidade estava em um período de grande crescimento construtivo e muitas transformações urbanísticas. Em 1916 era inaugurado aquele que foi o primeiro arranha-céu da capital paulista, o Edifício Guinle, na Rua Direita com seus então surpreendentes sete andares.

Em 1924 os céus paulistanos seriam conquistados por outro edifício, não muito longe dali, na Rua Líbero Badaró: o Sampaio Moreira. A nova construção chegava com doze andares e cinquenta metros de altura, um feito e tanto para a São Paulo de antigamente.

O Prédio Martinelli em 1929

No mesmo ano de sua inauguração outro empreendimento já se preparava para em breve tomar o título de mais alto da cidade. Era o Prédio Martinelli, vislumbre de Giuseppe Martinelli, um imigrante italiano que veio ao Brasil para ser açougueiro e se transformou num dos mais ricos empresários do país.

A construção do Prédio Martinelli levou 10 anos (1924 a 1934) e foi sempre tomado por polêmicas. Grandioso em volume e majestoso em sua arquitetura, trouxe pânico para muitos paulistanos que achavam que as dimensões gigantescas do edifício, muito maior do que qualquer coisa construída por aqui até então, era a semente para tragédias. Outros acreditavam que o prédio iria “roubar” o sol das casas (veja nota no final deste artigo)*¹.

O medo de desabamento durante as obras, por exemplo, fez com que muitas pessoas desviassem seus caminhos para não passar perto do prédio. Alguns acidentes com operários da construção, um deles inclusive fatal, aumentava o medo, os boatos e as especulações sobre o prédio no cenário popular.

Mas foi na tarde de 24 de novembro de 1929, um domingo, que o Prédio Martinelli sofreu um incêndio em seu 26° andar.

Naquele época o edifício já havia sido inaugurado (ele seria concluído totalmente apenas em 1934) e muitas atividades já operavam no gigante paulistano, como o Cine Rosário e vários salões e escritórios. Entretanto como o prédio ainda estava em obras, existia muita madeira espalhada especialmente nos andares mais altos que ainda não estavam finalizados.

De acordo com a reportagem da época feita pelos jornais A Gazeta, Diário de Notícias e Correio Paulistano, o andar foco do incêndio era onde ficavam os motores dos elevadores.  Um curto circuito na instalação elétrica junto a estes motores teria atingido o madeiramento e iniciado o incêndio que rapidamente se alastrou pelo andar.

As chamas também atingiram a torre de madeira que ficava no topo do prédio e sustentava publicidade e um farol que iluminava parte da cidade como atração. A estrutura não aguentou e acabou desabando. A sala de máquinas também ficou completamente destruída.

A grande dificuldade em combater o incêndio vinha do fato de o Corpo de Bombeiros da cidade ainda não estar devidamente preparado para lidar com uma construção tão alta. Os carros logo chegaram ao local com grande pessoal, mas as mangueiras não tinham comprimento suficiente e os hidrantes da região não tinham água o bastante para a batalha contra o fogo.

Para acabar com as chamas foi necessário um verdadeiro cordão humano com bombeiros, policiais e até alguns operários, que se juntaram para passar baldes de mão em mão até o foco do incêndio.

As chamas só seriam controladas no início da noite, por volta das 20 horas. Felizmente, fora o prejuízo material e financeiro – estimado em 200 contos de réis – não houve nenhuma morte e apenas algumas poucas pessoas sofreram ferimentos leves.

A torre e o farol foram completamente destruídos.

Com o fim do trágico ocorrido e posteriormente a conclusão das investigações, as obras do Prédio Martinelli foram retomadas e seguiram sem maiores problemas até sua conclusão definitiva, em 1934.

O deficitário trabalho do Corpo de Bombeiros da época devido a ausência de equipamentos preparados para vencer grandes alturas foi duramente criticado pela imprensa. Mas o principal alvo das críticas foi o então prefeito da cidade, José Pires do Rio.

Os textos diziam que a cidade que estava em franco crescimento não estava sendo preparada a altura para suportar incêndios e outras tragédias, com poucos hidrantes e abastecimento de água ineficiente.

A cidade só veria outro incêndio em arranha-céu 43 anos mais tarde na tragédia do Edifício Andraus.

Notas complementares:

*1 Um prédio com dimensões tão grandes como o Martinelli rapidamente entrou no imaginário popular, trazendo rumores, medos e muitos boatos.

Um deles dizia que o prédio era tão alto que iria roubar o sol da casa das pessoas ou mesmo as melhores vistas da paisagem da cidade. Esse sentimento logo foi aproveitado por anúncios imobiliários bem humorados, como este a seguir:

2* A primeira vítima fatal no Edifício Martinelli surgiu em 1927, quando um operário despencou das obras de construção no décimo andar falecendo com o impacto da queda.

Bibliografia consultada:

  • Correio Paulistano – edição 23.720 de 26/11/1929 pp 8
  • A Gazeta – edição 6622 pp 8
  • A Gazeta – edição 0784 de 31/08/1929 pp 1
  • A Gazeta – edição de 25/11/1929 pp 8
  • Diário de Notícias – edição 0739 de 26/11/1929 pp 14
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19 respostas

  1. Parabéns. Maravilhoso texto. Em 1929, realmente os bombeiros não tinham a menor condição de combater um incêndio no 26º andar. Já existiam viaturas com motor a explosão com bombas acopladas, mas também ainda existiam carroças que puxavam bombas a vapor, que só foram totalmente aposentadas em 1931. O prédio certamente não possuía rede de hidrantes interna e por consequência, só mesmo o velho passa passa de baldes é que pode ter resolvido o problema.Aliás, ainda hoje, um incêndio no 26º andar de um prédio, que equivale a mais de 75 metros de altura, só pode ser combatido por dentro do próprio prédio (ou a partir de um prédio vizinho, o que nem sempre acontece), usando a rede de incêndios do próprio prédio)

  2. Douglas, gostei do texto mas poderia dizer se já houve matéria aqui sobre o necrotério municipal na 25 de Março, mencionado no texto do jornal? Caso não, fica a sugestão. Abraço

      1. Sei que já vou tarde na resposta, mas na Rua 25 de Março ficava parte das instalações da polícia (em um terreno que se iniciava praticamente no Pátio do Colégio e descia até à 25). Ali também era o necrotério policial, que então fazia às vezes do IML. Espero ter ajudado, sem prejuízo de qualquer pesquisa do SP Antiga a respeito. Abraços!

  3. Estranha a 1° foto..onde mostra o prédio em 1929….aparece um ônibus 352 urbano.
    Sinistro.

  4. boa tarde Douglas Nascimento, todo o mundo ver, em 1926 na cidade de Nova York E U A, ja estavam construindo o Empire State, na epoca o maior edificio do mundo, enqunto aqui em Sao Paulo no Brasil, se ouviam essas bobagens sobre a construçao do edificio Martinneli, nota se mesmo com o crescimento da cidade as pessoas nao aceitavam o progresso, e isso na mente delas um edificio muito alto era sinonimo de tragedias.

    1. Na verdade, segundo consta, em fins do século 19, apareceram os primeiros edifícios de grande porte em Nova York e também em Chicago. O Flat Iron Building, com 22 andares, foi inaugurado em 1902!!!
      Realmente, a diferença entre as mentalidades, pesou e ainda pesa muito. Está para ser inaugurado o edifício Platina 220, no Tatuapé, zona leste de Sampa, e muitos estão apavorados com seus 172 metros de altura. Aliás, até hoje nenhum prédio de São Paulo chegou a 200 metros de altura e nem ultrapassou os 51 andares, em pleno século XXI.

  5. MUITO BOM SABER QUE ESTES INCENDIOS OCORRERAM POR CAUSA DE INSTALAÇOES ELETRICAS MAU EXECUTADAS

  6. Todo pioneirismo, inevitavelmente, muitas vezes traz consigo muitos sacrifícios de diversas formas.

  7. Acho que la primeira fotografia não é de 1929! Percebam que o edifício está muito “cru” em comparação à segunda imagem, a do incêndio, ocorrido, como diz a matéria, em 1929.

  8. Parabéns, adoro seu trabalho, é muito interessante conhecer o passado de nossa cidade, aprendo muito com sua pesquisa, obrigada!!!

  9. Bom dia. Uma crítica construtiva: aqui creio que o ilustre jornalista pretendia dizer “trágico”, mas consta “tráfico”:

    “Com o fim do tráfico ocorrido e posteriormente a conclusão das investigações, as obras do Prédio Martinelli foram retomadas e seguiram sem maiores problemas até sua conclusão definitiva, em 1934.”.

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